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Por que Brasil é o sétimo país mais desigual do mundo

Criado em 2003, Bolsa Família se consolidou como ferramenta de combate à desigualdade - Edson Silva - 25.ago.2011/Folhapress
Criado em 2003, Bolsa Família se consolidou como ferramenta de combate à desigualdade Imagem: Edson Silva - 25.ago.2011/Folhapress

Bárbara Forte

De Ecoa, em São Paulo

20/02/2020 04h00

A baiana Erika Aline Oliveira, 20, trabalha como diarista em Palmeiras, cidade com cerca de nove mil habitantes na região da Chapada Diamantina (BA). Mãe da pequena Aylla, de três anos, ela recebe mensalmente o valor de R$ 180 por meio do Bolsa Família.

Para ela, o benefício é determinante para a renda mensal da casa. Seu companheiro, Tamilo Novais Silva, 27, também trabalha como diarista. Ambos recebem até R$ 70 por faxina realizada. "Com o dinheiro que recebo há um ano e oito meses do governo, eu consigo cobrir os gastos com leite e merenda da minha filha", afirma.

A alimentação na casa de Rosângela de Oliveira Almeida, 44, outra moradora de Palmeiras e diarista assim como Erika, também é garantida pelo benefício. Na casa onde mora com cinco filhos, dois netos e o marido, o valor recebido chega a R$ 600: "Tudo é destinado à compra da comida que vai à mesa", afirma.

O programa de transferência de renda criado em 2003 se consolidou como uma importante ferramenta de combate à desigualdade no país.

No entanto, nesta quinta-feira (20), Dia da Justiça Social, Erika e Rosângela acordaram em um cenário no qual os cortes cada vez mais comuns do Bolsa Família à população mais vulnerável impulsionaram o aumento da extrema pobreza no Brasil, segundo estudo divulgado pela FGV (Fundação Getúlio Vargas).

Entre 2014 e 2018, a renda dos 5% mais pobres no Brasil caiu 39%. Nesse mesmo período, o país registrou um aumento de 67% na população que vive na extrema pobreza, segundo o levantamento.

Erika é beneficiária do Bolsa Família e recebe R$ 180 por mês; Aylla, sua filha, tem três anos  - Arquivo Pessoal  - Arquivo Pessoal
Erika é beneficiária do Bolsa Família e recebe R$ 180 por mês
Imagem: Arquivo Pessoal
De acordo com José Antonio Moroni, dirigente do Inesc (Instituto de Estudos Socioeconômicos), o Bolsa Família dá um patamar mínimo para as famílias em vulnerabilidade social poderem acessar direitos como educação e saúde. Seu fim, portanto, seria perigoso. "O ciclo de pobreza é uma coisa hereditária no Brasil. O avô foi extremamente pobre, a filha é e o neto vai ser. Sem programas como esse, jamais haverá o rompimento do ciclo", explica.

Desigualdade enraizada

Essa história faz do Brasil o sétimo país mais desigual do mundo, segundo o último relatório divulgado pelo Pnud (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento), ficando atrás apenas de nações do continente africano, como África do Sul, Namíbia, Zâmbia, República Centro-Africana, Lesoto e Moçambique. O levantamento tem como base o coeficiente Gini, que mede desigualdade e distribuição de renda.

O documento, divulgado no fim de 2019, destaca ainda que apenas o Catar tem maior concentração de renda entre o 1% mais rico da população do que o Brasil.

"A parcela dos 10% mais ricos do Brasil concentra 41,9% da renda total do país, e a parcela do 1% mais rico concentra 28,3% da renda", diz o texto. No Catar, a parcela do 1% mais rico concentra 29% da renda do país.

A desigualdade mostrada pelo relatório pode ser explicada por uma série de fatores, segundo Katia Maia, diretora executiva da Oxfam Brasil. Três deles, contudo, são determinantes para que o país permaneça numa posição negativa nos próximos anos: o racismo, a questão de gênero e a tributação de impostos.

Racismo é estrutural

"O Brasil vem de uma construção escravocrata, onde algumas pessoas valiam mais que as outras. Isso se reflete até hoje", diz Katia Maia, em referência ao racismo que ocorre de maneira estrutural e institucionalizada — um exemplo disso é a população carcerária brasileira, composta por 65% de detentos negros, segundo o Departamento Penitenciário Nacional.

O racismo foi estruturante no processo de construção de desigualdade e, hoje, é estruturante na manutenção dela" José Antonio Moroni, dirigente do Inesc

A legislação referente ao racismo, prevista na Constituição de 1988 como um crime imprescritível e inafiançável, é uma política pública importante no enfrentamento da questão. A lei de injúria racial, criada posteriormente, no entanto, é vista como uma brecha por Moroni: "Nunca vi ninguém ser preso por racismo. Na maioria dos casos, a pessoa paga apenas uma multa", comenta.

A questão também é de gênero

Erika e Rosângela, que recebem o Bolsa Família como um complemento financeiro para manter os filhos, são mulheres negras e, por isso, estão na base da pirâmide da desigualdade.

A taxa de desemprego entre mulheres negras no Brasil é de 16,6%, o dobro da verificada entre homens brancos (8,3%). A taxa entre as mulheres negras também é maior do que entre as brancas (11%) e os homens negros (12,1%), segundo último a PNAD contínua (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), divulgada em outubro de 2019.

E não é só isso. As mulheres negras também são vítimas mais recorrentes de homicídios. Segundo o Atlas da Violência, a taxa de assassinatos desse grupo cresceu 29,9% de 2007 a 2017. No mesmo período, o índice de homicídio de mulheres não-negras cresceu 4,5%.

"Ainda há uma visão de que a mulher é 'menor' que o homem. E essa definição é determinada pelo próprio homem", diz Katia Maia. Dessa forma, avalia a especialista, "as mulheres permanecem com salários menores e menos acesso a cargos de poder", completa.

O imposto pesa no bolso

É no bolso de Erika, que tem uma filhinha de três anos, que o imposto sobre o leite pesa, e não da população considerada muito rica. "Para o rico, milionário, não significa nada aquele imposto no litro do leite. Mas para o pobre significa. E, por isso, é importante que haja uma reforma tributária real", avalia Katia.

A base da tributação, hoje, é em cima do consumo. Quando a população compra algo, ali está embutido o valor do imposto - e ele é igual para mim e para você. Outros países já realizam uma nova fórmula para diminuir a desigualdade nesse quesito.

Nos Estados Unidos, por exemplo, a maior parte da taxação está sobre patrimônio e renda - envolve heranças, inclusive. Já a tributação por meio do consumo é bem mais baixa.

A média do imposto que volta para os cofres públicos após o consumo de uma beneficiária do Bolsa Família pode chegar a 45%. É muito alta" José Antonio Moroni, dirigente do Inesc

"Para uma pessoa que recebe R$ 100 do Bolsa Família e paga R$ 45 só de imposto, a carga tributária é alta. Quem compra um helicóptero para uso e lazer e tem isenção, por exemplo, a carga é baixa", complementa o especialista.

Por que ainda não mudamos?

"Falta vontade política", avalia Katia Maia ao comentar sobre os motivos pelos quais o Brasil ainda não teve uma grande reforma tributária ou ações mais efetivas sobre o racismo e a questão de gênero.

Se falta interesse dos políticos no Congresso, também é possível dizer que faltam representantes que priorizem em suas pautas a questão da desigualdade social.

Katia lembra da responsabilidade do eleitor, que neste ano vai às urnas para eleger os prefeitos e vereadores em suas cidades. Para ela, além de escolher parlamentares que tenham em mente a criação e manutenção de políticas públicas que atuem pela diversidade e pela igualdade, a fiscalização e movimentação popular por meio de comunidades e associações podem ser eficazes para uma mudança.

Ela lembra, por fim, que ações cotidianas podem ser o primeiro passo: "Precisamos perceber quando estamos sendo racistas, intolerantes. Por que achamos que umas pessoas valem mais que as outras? A mudança inicial vem de cada um", afirma.