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"É a sociedade que tem que se integrar aos indígenas", diz Márcia Kambeba

Nícolas Noel
Imagem: Nícolas Noel

Elena Wesley, do data_labe

Colaboração para Ecoa, do Rio de Janeiro

11/08/2020 04h00

Quando era criança, na aldeia Belém do Solimões do povo Tikuna, no Amazonas, a escritora, geógrafa, atriz e pré-candidata a vereadora Márcia Wayna Kambeba seguia o mesmo ritual todas as manhãs: o pai a acordava às 6h, e os dois seguiam até as margens do rio onde observavam, em silêncio, o movimento das águas, os sons da floresta e um barco de pesca se aproximando. Na juventude, já em território urbano, concluiu que "a cidade virou as costas para o rio".

Não é apenas à degradação ambiental que a geógrafa se refere. Desde sua construção, a cidade adota uma postura de desamparo às populações indígenas, ribeirinhas e quilombolas, atualmente no epicentro do contágio de Covid-19, à medida que a doença, que já matou mais de 100 mil brasileiros, avança para o interior do país. Todavia, são elas as detentoras de saberes tradicionais que lhes permitem, até hoje, viver em harmonia com a natureza e com seus semelhantes.

Embora o discurso comum defenda a adaptação do indígena às práticas ocidentais, Kambeba afirma o inverso: se o Brasil quer uma nova vida no pós-pandemia, é hora dos brancos, não indígenas, se integrarem aos povos originários e aprenderem com eles. O primeiro passo seria reformular a forma como a cidade enxerga o tempo, que é um dos principais fatores que reforçam as desigualdades sociais. Por vê-lo de forma linear, o espaço urbano não se preocupa em "entender o passado e preparar o presente para a chegada do futuro", diferente da maneira como a aldeia se organiza. "A aldeia, por ter um tempo circular, entende a importância de se pensar e compreender o passado, para poder vivenciar o hoje e pensar o futuro. Por isso, a gente experimenta o bem viver que é uma relação intrínseca entre o homem e a natureza. Em contrapartida, a cidade tem outra dinâmica, a do viver bem, que se configura numa relação de consumismo, de querer sempre o mais bonito, o mais caro, a casa no melhor bairro, a roupa de marca, o melhor restaurante".

Ao optar por valorizar o que parece melhor a partir de uma lógica consumista, Márcia Kambeba acredita que a cidade desperdiça os saberes fundamentais que são essenciais para uma vida saudável em sociedade, como o respeito à natureza, o cuidado com o outro e o zelo pelo que é coletivo. Citando seu livro "O lugar do saber", lançado em 2018 pela Casa Leiria, a escritora explica que tal lugar pode ser a aldeia, a comunidade quilombola e até mesmo a cidade, mas questiona como ele tem sido preparado e cuidado.

"O território físico da aldeia é limpo. Todo mundo cuida do interior da sua oca, varre seu quintal e a frente da sua casa, mas a cidade, não. Ela é acostumada a limpar dentro de casa, o quintal fica ao deus-dará, e com a nossa rua, da calçada para lá, ninguém está preocupado. É do município, então ele que se vire com o cocô do cachorro, o lixo no esgoto, o capim que cresceu. No bairro onde moro, em Castanhal [região metropolitana de Belém, no Pará], eu limpo a minha calçada de uma ponta a outra. Os vizinhos se admiram, acham coisa de outro mundo. A cidade tem essa mentalidade de que se é do outro, então eu não faço. Esse é o grande problema do Brasil", arremata a autora de "Ay Kakyri Tama - Eu moro na cidade" (Pólen Livros, 2013) com poemas que não só falam da cultura Kambeba, como reivindicam que o indígena siga sendo indígena, mesmo morando na cidade. Afinal, não são também as cidades, mesmo com seus monumentos de concreto, parte do mundo e da natureza?

O egoísmo com o outro que Márcia percebe com a falta de cuidado com as calçadas alheias se repete na relação com a água. Como exemplo, a artista e ativista cita o hábito de demorar muito no banho: "Liga o chuveiro e fica de molho, o tempo não passa... A água potável vai embora enquanto se ensaboa. Se for passar shampoo, piora. Gasta uma hora. E se você questiona por que a pessoa faz isso, ela diz que não vai fazer diferença se deixar de fazer, já que seu vizinho continuará fazendo". A geógrafa, então, faz um contraponto a essa lógica a partir da perspectiva indígena que vê na água um valor cultural. Na aldeia Kambeba, as mulheres saem ao amanhecer, com seus baldes na cabeça acompanhadas das crianças. No rio, lavam as roupas e dão banho nos filhos. Ao contrário da cidade, a aldeia não desfruta de água potável em fartura para seu consumo e depende de poços artesianos para ter acesso à água encanada. De acordo com o censo IBGE 2010, apenas 34% das terras indígenas são atendidas por uma rede geral de distribuição de água.

"Certa vez o pessoal de uma aldeia Kambeba me ligou dizendo que as crianças e os idosos estavam ficando com diarreia por causa do igarapé que estava sujo e perguntando se eu poderia ajudar a comprar uma bomba para puxar água para o poço. Eu estava filmando o seriado "Diários da Floresta", como atriz, e a equipe quis ajudar. Juntaram R$800, e o cacique comprou a bomba. Daí conversamos sobre a importância de fazer um trabalho de conscientização ambiental com as comunidades não indígenas que vivem no entorno da aldeia. Então, as crianças produziram panfletos e foram entregar. Elas explicavam: 'Não jogue lixo no rio. O rio é fundamental pra gente, porque brincamos no rio, tomamos banho no rio'. Mas as pessoas pegavam o panfleto e jogavam no chão sem nem ligar, ou seja, era mais lixo. Então, todo mês a comunidade passou a limpar o rio, catando o lixo jogado pela cidade que fica boiando na superfície. Quando o rio seca, as crianças catam todas as impurezas, objetos cortantes com os quais elas podem se machucar. Isso acontece porque elas têm uma identidade com o rio, amor, pertencimento. A cidade perdeu isso. Ela é apenas uma observadora. Tudo é muito lindo, a flor, a floresta, mas não consigo me ver nela. A aldeia cuida da natureza como se fosse um ser humano. É como a cidade deveria enxergar uma árvore".

É a "pegada ecológica" das crianças Kambeba que deve inspirar o Brasil a tornar os bons hábitos conhecidos e reproduzi-los. A ativista e pré-candidata a vereadora em Belém pelo PSOL defende que, para "botar o Brasil em ordem", é preciso começar por nossa própria vida.

"Tem um provérbio chinês que diz que quando se quer colocar um país em ordem, a gente coloca em ordem a nossa vida, o equilíbrio espiritual, cultural, ambiental. Depois que a vida está em ordem colocamos a casa, depois da casa a rua, em seguida o bairro, a cidade e, então o país. Pra gente conseguir pôr um país em ordem, a nossa vida tem que estar em ordem, nosso corpo e espírito em equilíbrio. Senão, eu não vou compreender o outro da forma que ele precisa ser compreendido, eu não vou sentir o outro em mim.

Vou ver o outro apenas como alguém muito distante, que precisa simplesmente das minhas migalhas e não da minha atenção, do meu apreço, do meu olhar, de tudo aquilo que me faz humano. O governo diz que quer nos integrar à sociedade, a gente vem escutando essa frase há muito tempo, não é só dessa gestão. Na verdade, acho que é o inverso. É a sociedade não indígena que tem que se integrar à sociedade indígena e aprender. 'É hora de jogar as coisas velhas fora desse quarto. Tomar nas mãos o leme desse barco, como diz a música 'Renovação' da dupla amazonense Candinho e Inês'."

Colaborou Fred Di Giacomo (edição), do data_labe