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Caso Maurício mostra influência crescente de empresas por mudanças sociais

Mauricio Souza durante partida entre Brasil e Irã pela Liga Mundial de Vôlei em 2016 - Alexandre Loureiro/Getty
Mauricio Souza durante partida entre Brasil e Irã pela Liga Mundial de Vôlei em 2016 Imagem: Alexandre Loureiro/Getty

Matheus Pichonelli

Colaboração para Ecoa, de Campinas (SP)

29/10/2021 06h00

Na queda de braço entre o Minas Tênis Clube e Maurício Souza, jogador afastado e depois demitido do clube após uma postagem homofóbica em suas redes, pesou contra o atleta a pressão de dois grandes patrocinadores do time de vôlei.

A produtora de aço Gerdau e a fabricante de automóveis Fiat se manifestaram publicamente em relação às falas ofensivas do ex-jogador do time contra pessoas LGBTQIA+. Em suas redes, Souza havia compartilhado a notícia de que o novo Superman da DC Comics será bissexual com a seguinte legenda: "Ah, é só um desenho, não é nada demais. Vai nessa que vai ver onde vamos parar..."

A postagem fez o central parar em um bate-boca público com um colega da seleção brasileira, Douglas Souza, que é gay. Com a repercussão, Souza acabou demitido e viu as portas da seleção brasileira se fecharem para ele.

Casos assim têm sido cada vez mais comuns. Recentemente, o apresentador de TV Sikêra Júnior perdeu diversos anunciantes por conta de uma declaração homofóbica. O casal Joana Prado e Vitor Belfort perdeu o patrocínio de uma marca de vitaminas e complementos após reclamar no Instagram do banheiro unissex de um estabelecimento comercial. E Nego do Borel, acusado de assédio e estupro, só foi expulso de "A Fazenda", reality show da TV Record, graças à pressão das empresas que bancavam o programa.

No caso Maurício Souza, além de patrocinadoras da equipe, a Gerdau e a Fiat têm um outro ponto em comum: são apoiadoras do Fórum de Empresas e Direitos LGBTI+, que reúne organizações brasileiras e estrangeiras para discutir políticas de inclusão no mercado. A Gerdau já é signatária do grupo, e a Stellantis, controladora da Fiat, deve formalizar a sua entrada nos próximos dias.
Secretário-executivo do Fórum, o educador Reinaldo Bulgarelli afirma que o episódio mostrou como as empresas no Brasil estão aprendendo a se posicionar no espaço público. "Uma das missões do Fórum é ajudar as empresas a se expressarem a favor de direitos humanos, e a promover os direitos humanos."

Segundo ele, a agenda ESG (traduzida, do inglês, como Governança Ambiental, Social e Corporativa) se tornou uma forma de os investidores observarem melhor as práticas das empresas que financiam. Essa agenda pede justamente que as companhias participem da vida da sociedade, atinjam os objetivos do desenvolvimento sustentável e tenham cuidado com temas relacionados aos direitos humanos. "A Gerdau e a Fiat estão fazendo o que é esperado e se mostrando intolerantes com a intolerância."

Para o professor da ESPM Fábio Mariano Borges, que é doutor em sociologia do consumo, as empresas estão atentas a questões de direitos humanos por conta do zeitgeist (expressão em alemão que designa o "espírito do tempo"). "Elas sempre procuram antecipar comportamentos, atitudes, pautas para se conectar com o futuro e, dessa forma, dar um toque de contemporaneidade para o discurso delas junto aos consumidores."

Borges lembra que respeito a cidadania, direitos humanos, inclusão, aceitação e diversidade são itens de sustentabilidade e governança previstos no conceito de ESG. "As empresas que apoiam e apostam nessas pautas certamente são consideradas empresas mais bem preparadas para o futuro. E os investidores, obviamente, preferem investir em empresas que estão melhor preparadas para o futuro do que as menos preparadas. O preparo de uma empresa para o futuro não diz respeito somente à linha de produção, mas também à sua atuação, ao vínculo e sua conexão com a sociedade."

O educador Bulgarelli aponta ainda que as empresas, além da pressão de investidores, estão atentas ao olhar da população e dos seus consumidores. Por isso elas acabam cumprindo, junto com o Estado, um papel de reforço dos princípios constitucionais e legais. "Isso também deve ou deveria gerar uma atenção por parte de organizações políticas, religiosas, as autoridades e as lideranças que nem sempre estão afinadas e antenadas a isso. O importante é ver que as empresas ajudam a sociedade a entender esse debate e a se posicionar melhor à medida que elas próprias começam a se posicionar."

Esse posicionamento acontece, segundo ele, porque as corporações passaram a entender a defesa dos direitos humanos como uma questão fundamental para a sua sobrevivência na sociedade. Em outras palavras: a associação com discursos de ódio também gera prejuízos à marca e às finanças. "É um imperativo moral, ético e econômico. Tudo integrado e junto ao mesmo tempo. Quando elas se posicionam a favor dos direitos humanos e das questões das chamadas minorias, elas estão, na verdade, defendendo o todo. A sociedade brasileira não tem, em sua grande maioria, compromisso com a intolerância, com o ódio. As empresas podem, sim, ajudar a sociedade a refletir sobre esses temas e ver que o respeito e a dignidade das pessoas são inegociáveis."

Outra razão apontada para o especialista e professor Borges é que as empresas são cobradas cada vez mais para se humanizar. "E como a gente humaniza uma marca? Falando de coisas que dizem respeito a seres humanos. Quem têm causas são as pessoas. E as empresas podem, sim, contribuir com essas causas. Devem contribuir."

Ele pontua ainda que "estamos na era da reputação" e, diferentemente do passado, quando reputação estava associada ao sucesso e ao sobrenome, hoje ela envolve sobretudo as atitudes e as crenças das pessoas —e, consequentemente, das marcas que buscam se humanizar. "Empresas que apoiam pessoas envolvidas em assuntos ou fatos que são racistas, homofóbicos, ou seja, anticidadãos e antidireitos humanos, ficam com a reputação ferida. No caso do Maurício Souza, quando as patrocinadoras perceberam a assertividade dele na declaração homofóbica, que é um crime, as empresas falaram: 'não tenho mais nada a ver com isso. Essa reputação dele não me pertence, a minha reputação é outra'."

Essas empresas, prossegue o professor, são cobradas cada vez mais para terem ações coerentes com seus discursos. "Se elas estão promovendo inclusão dentro da organização, e estão envolvidas com ações de diversidade, com programas para contratação de pessoas negras, por exemplo, fica um discurso meio incoerente [manter o patrocínio]. Já é praxe, na cultura do cancelamento, que quando a gente se depara com uma declaração anticidadã de uma pessoa conhecida, que as pessoas comecem a investigar quem são as marcas por trás dessa pessoa, e vão no perfil dessas marcas exigir que elas cancelem seus contratos com essa pessoa. As marcas estão antecipando isso. É o que eu chamo de ajuste de conduta. É uma forma de a sociedade e os consumidores mostrarem para aquela marca qual é a conduta esperada", diz.

Fábio Mariano Borges rebate a ideia de que as empresas só se envolvem em causas sociais por buscarem lucratividade. "Sim, elas fazem também por lucratividade. Mas se até então as marcas lucraram muitas vezes fomentando exclusão, que maravilha que daqui pra frente as marcas possam continuar lucrando fomentando cidadania, inclusão e direitos humanos", diz.

Como escreveu o diretor de comunicação da General Motors no Brasil, Nelson Silveira, em sua página no Linkedin, pesquisas e experiências cotidianas já mostram que a diversidade "aumenta a criatividade organizacional ao proporcionar um espaço onde as diferenças são valorizadas, promove a inovação, reduz conflitos, melhora a imagem do negócio, contribui para a construção de uma cultura meritocrática e para o alcance de melhores resultados".

Para ele, os princípios de ESG se tornaram "licença para operar" nos dias atuais. "Se você não tem propósito, se não incorpora a diversidade, a equidade e a inclusão na cultura e nos valores da empresa, você vai ficar fora do jogo", completou ele em entrevista a Ecoa.

Há, claro, um caminho longo a ser percorrido —e nem todas as companhias ainda estão à vontade para se manifestar. Um executivo de uma das 20 maiores empresas do país ouvido pela reportagem pediu para não ser identificado ao abordar o tema, ainda delicado internamente. Ele defende que, se antes as companhias compreendiam que suas atividades causavam impactos na comunidade e era papel do Estado definir os limites e exigir compensações, hoje parte delas entende que é também agente das ações e transformações sociais. Mais do que a simpatia do público e dos consumidores, a defesa de causas como direitos humanos posiciona as empresas na ponta de lança de projetos que, no limite, envolvem a sobrevivência de todos —inclusive seus clientes, funcionários e as comunidades onde atuam.